quarta-feira, 14 de julho de 2010

As vivências de um copo e do seu dono Jacinto

Um… dois… três… dez… doze comprimidos, todos de uma só vez deitados à boca, empurrados para o interior do seu organismo com a ajuda do seu velho amigo, companheiro de outros tempos, em que o que ajudava a empurrar não eram comprimidos.


Jacinto é agora um homem velho, com problemas de saúde, e o seu fiel companheiro não é um cão, é um copo. Este copo que hoje não serve para mais nada do que ajudar um velho doente na toma dos seus remédios, foi em tempos um copo vivido…



- Jacinto acorda são horas de ires para a escola, e ainda tens de tomar o pequeno-almoço.

Como eu recordo aquelas alturas em que eu era jovem, como o meu dono, e todas as manhãs me enchiam de leite com o pretexto de que era bom para fazê-lo crescer.

Hoje sou nada mais do que um copo gasto pelo tempo, com lascas, embaciado pelas lavagens, sem o brilho de outrora, passado por água apenas para tirar o pó que se acumula quando estou na mesa-de-cabeceira do meu dono, à espera de ser utilizado.

Os anos passam e a realidade também. E a minha realidade é esta. Infelizmente para mim e também para Jacinto, que preferia com certeza que eu lhe desse outra utilidade que não esta.

Longe vão os tempos em que eu acabava de chegar a uma casa de aspecto acolhedor, no seio de uma família bem-disposta e simpática. E onde o menino Jacinto era a alegria da casa.

A casa era nova e por isso merecia, móveis, lençóis, toalhas e louça nova. Foi graças a estes caprichos que eu fui parar a casa dos Gouveia, pais do Jacinto.

Fui um copo muito utilizado, era o preferido do meu pequeno dono, e por isso ele usava-me em várias ocasiões. Hoje, pouco resta de mim e daquilo que me caracterizava, como a expressão “With love”, gravada a vermelho no vidro do copo, e que hoje não são mais que umas poucas letras sumidas pelo passar dos anos. 

Fui oferecido pela Senhora Maria Gouveia no quinto aniversário do Jacinto. A partir daí o menino nunca mais me largou. Nessa mesma noite exigiu que a mãe lavasse o copo para poder beber leite nele antes de dormir. E assim foi o meu primeiro contacto com o meu eterno dono.

Nunca fui um copo esquisito, aceitava quase tudo o que me ponham dentro, apesar de haver algumas bebidas que não eram do meu agrado, ou porque tinham um cheiro forte, ou porque eram demasiadas escuras e não me deixavam ver através delas.

Ainda hoje sou um copo alto e esbelto, digamos que imponente. O meu tamanho avantajado permite-me um uso variado. Talvez por isso foram várias as bebidas que servi.

Como tudo na vida tem um começo, e o meu foi o de copinho de leite. Com o passar dos anos, Jacinto apurou o paladar e desde aí poucas foram as vezes que servi leite.

Eu era festas, curar ressacas, dores de cabeça, companheiro de jogos de futebol, e mais tarde até ajudei o meu dono em momentos embaraçosos, quando ele tinha de recorrer ao viagra para manter uma boa performance.

Ai como eu lembro esses tempos de grandes vivências e experiências únicas.

Fui um copo boémio, como o Jacinto. Um copo que experimentou tudo o que havia para experimentar. Nunca fui de relações, talvez por não ter tempo para isso, dada a minha requisição. Mas fui um copo de amores e desamores, de cheiros e odores, de momentos e sabores.

Lembro-me como se fosse hoje, quando eu e o Jacinto apanhámos a primeira bebedeira. Estávamos sozinhos em casa e ele foi ao frigorífico buscar umas bejecas do pai, tirou-me do armário e levou-me para a sala a ver um jogo de futebol. Tanto um como o outro éramos jovens inexperientes, e não soubemos medir as consequências da situação. Foram umas atrás das outras, contei quatro. É claro que o Jacinto entrou em coma alcoólico e graças a isso teve de passar uma noite no hospital. Quando foi para casa, fui eu quem o ajudou a empurrar os comprimidos, para chegarem mais depressa ao estômago e curar-se rapidamente.

Momentos difíceis estes. Mas nem só de momentos difíceis se fizeram a minha vida. Ainda recordo os fins de tarde de Inverno, passados em frente à lareira, a escaldar com chocolate quente, acompanhando Jacinto nas suas leituras romancistas.

E aquelas manhãs de Verão, refrescadas com uma limonada depois das habituais caminhadas de Jacinto à beira-rio e de uns quantos mergulhos também.

Ah e aquela vez em que derramei o café em cima do sofá porque o Jacinto estava muito ocupado a dar uns amaços na filha da vizinha do lado. O que lhe valeu um raspanete e dois dias sem poder banhar-se no rio.

Algumas situações engraçadas e outras embaraçosas, que eu recordo agora com muita saudade.

Não sei se o meu fim está próximo como o de Jacinto, que já conta com 76 anos. Eu sou cinco anos mais novo, mas estou muito desgastado pelo tempo. Apesar de ainda me manter de pé, sinto-me um copo acamado, como Jacinto. Sem energia para a vida. Quando eu morrer, não quero ser reciclado, não quero viver outra vida, conhecer outro dono, esta chegou para ser feliz.

1 comentário:

  1. Muito bom: uma história bem contada de uma vida que se quiz longa e intensa. Resultou num belo pedaço de biografia.Estás a dar-lhe!

    ResponderEliminar