sexta-feira, 12 de março de 2010

Herança de família

Este texto que publico aqui, surgiu de um curso de escrita criativa que frequentei no final de 2009, no El Corte Inglés de Lisboa. O professor pediu que fizéssemos como primeiro exercício prático, um texto que ocupasse uma folha A4 (no máximo) e onde falássemos de um livro que fosse importante para nós, um livro que tenhamos lido e que nos diga alguma coisa...o livro que achássemos ser o mais importante da nossa vida. E eu escrevi este texto.

Para mim o “livro”, (se é que se pode chamar livro, e já vou explicar porquê) que mais gosto tive a ler, e também, aquele que mais sensações e sentimentos despertou em mim, foi uma herança de família.
Este “livro”, para não chamar diário, não tem editora, não tem capa (a não ser a própria capa do caderno onde foi escrito, capa esta de aspecto amarelado, com várias flores coloridas, de diversos tamanhos e onde se pode observar uma boneca de cabelos azuis, com uma mini saia verde e azul, uma blusa mangas de balão laranja, com umas botas roxas de cano alto, a fumar uma cigarrilha). O conteúdo que está dentro deste “livro” nada tem a ver com a capa que o antecede. A capa de aspecto moderno e alegre, esconde palavras tristes, numa escrita antiquada.
Com pouco mais de 100 páginas, 410 quadras e 1640 versos, este “livro”, acompanhado de uma cassete áudio, é dirigido ao meu pai, e começa assim: «J. F; quando eu morrer; pões esta fita a rolar; para ouvires o que te vou dizer».
A relíquia como lhe chamo, foi lido por mim, após a morte da minha avó paterna, a autora deste “livro”. Já lá vão 11 anos. Até então não tinha conhecimento da sua existência (do “livro”). Escrito em verso, mas sem obedecer rigorosamente a esquemas rimáticos, sinais de pontuação ou outro tipo de regras gramaticais, o seu conteúdo vale mais do que tudo isso. É uma história de vida, a história da minha avó. E quando comecei a lê-lo, o que menos me importou foi a maneira como ela o escreveu.
Se tem erros? Tem muitos. Se a rima é prefeita? Não é. Se as palavras são vulgares? São. Mas para mim isso é o que menos importa. Aquilo que eu queria quando peguei nesta relíquia, e comecei a folheá-la (cada vez com mais curiosidade, e tristeza também, pois a sua vida foi cheia de provações) era entrar na vida da minha avó, saber um pouco mais sobre si, sobre o que fez, como fez, porque fez.
Quando o abri, senti uma sensação estranha, fiquei nervosa…não sei…era a história da minha avó, alguém muito especial para mim. E não fazia ideia nenhuma do que estava ali escrito, se ia ler coisas que preferia nunca de ter lido. O que eu sei, é que li-o com uma vontade enorme, género aqueles livros, que se lê numa noite, porque estamos muito curiosos pelo seu final, ou porque a escrita é tão entusiasmante e viciante que não conseguimos deixar de lê-lo.
Ao avançar cada vez mais, nas páginas do “livro”, a sensação de estranheza e nervosismo, foi passando, dando lugar a uma profunda tristeza. Era um “livro” triste, cheio de mágoas, dor, sofrimento...logo a minha avó que tinha o sorriso mais encantador que alguma vez vi. Mas nem tudo são tristezas, e aqui também descobri o que fazia a minha avó feliz, para além da sua família, ela adorava cantar «quando me sinto só; ponho me logo a cantar; e assim vou distraindo; às vêzes para não xorar», adorava cinema e passear.
Mas o “livro” não fala só da vida de uma pessoa, nele estão também mencionados factos históricos: a Gripe Pneumónica de 1918 em Portugal que matou mais de 60 mil pessoas, incluindo o pai da minha avó «morreu no ospital; pela grande enpedemia; mas as mortes eram tantas; que ninguém dos seus sofria; fizeram-lhe o funeral; no meio da atrapalhação; viram que não era meu pai; quando lhe abriram o caixão», e do período de crise que se vivia no pós Primeira Guerra Mundial «as bixas de gente eram grandes; e não chegava para todos; mas a fôme era muita; e roubavam os aos outros», «e vinha a guarda a cavalo; e sem ter dó de ninguém; espesionavam toda a gente; ficasem eles mal ou bem»
Nunca pensei que a minha avó guardava um bem tão precioso, e que um dia eu teria o privilégio de abrir as páginas da sua vida: «Viveu muito pobre; mas onradamente; fêz sempre boa figura; ao pe de toda agente», «eu nunca fui estudar; mas tenho comprienção; não e preciso estudar; para ter educação», «Na alegria da vida; não conta só o dinheiro; quantas pessoas são ricas; e xoram o dia enteiro», «não à riqueza maior; do que armonia no lar; podemos ter muitas faltas; mas alegria para dar».
São estas palavras, simples mas cheias de significado que fazem desta herança de família, o “livro” mais importante que já li. E acredito, que por muitos livros que leia, nenhum vai ter a importância que este tem e continuará a ter na minha vida. Este conta a história da minha avó.
Agora que estou quase a acabar, queria referir que este “livro” foi escrito pela minha avó paterna, de seu nome Rosa Silva, quando esta tinha 56 anos, morrendo no ano de 1998, com 83 de idade.

1 comentário:

  1. Era difícil encontrares um tema melhor. É uma bela história e foi para ti uma leitura muito intensa. Adorei e acho que as transcrições dos pedaços escritos pela tua avó com os erros que dava nos mostram bem a grandeza e a dureza da sua vida. Parabéns!

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