Para mim o “livro”, (se é que se pode chamar livro, e já vou explicar porquê) que mais gosto tive a ler, e também, aquele que mais sensações e sentimentos despertou em mim, foi uma herança de família.
Este “livro”, para não chamar diário, não tem editora, não tem capa (a não ser a própria capa do caderno onde foi escrito, capa esta de aspecto amarelado, com várias flores coloridas, de diversos tamanhos e onde se pode observar uma boneca de cabelos azuis, com uma mini saia verde e azul, uma blusa mangas de balão laranja, com umas botas roxas de cano alto, a fumar uma cigarrilha). O conteúdo que está dentro deste “livro” nada tem a ver com a capa que o antecede. A capa de aspecto moderno e alegre, esconde palavras tristes, numa escrita antiquada.
Com pouco mais de 100 páginas, 410 quadras e 1640 versos, este “livro”, acompanhado de uma cassete áudio, é dirigido ao meu pai, e começa assim: «J. F; quando eu morrer; pões esta fita a rolar; para ouvires o que te vou dizer».
A relíquia como lhe chamo, foi lido por mim, após a morte da minha avó paterna, a autora deste “livro”. Já lá vão 11 anos. Até então não tinha conhecimento da sua existência (do “livro”). Escrito em verso, mas sem obedecer rigorosamente a esquemas rimáticos, sinais de pontuação ou outro tipo de regras gramaticais, o seu conteúdo vale mais do que tudo isso. É uma história de vida, a história da minha avó. E quando comecei a lê-lo, o que menos me importou foi a maneira como ela o escreveu.
Se tem erros? Tem muitos. Se a rima é prefeita? Não é. Se as palavras são vulgares? São. Mas para mim isso é o que menos importa. Aquilo que eu queria quando peguei nesta relíquia, e comecei a folheá-la (cada vez com mais curiosidade, e tristeza também, pois a sua vida foi cheia de provações) era entrar na vida da minha avó, saber um pouco mais sobre si, sobre o que fez, como fez, porque fez.
Quando o abri, senti uma sensação estranha, fiquei nervosa…não sei…era a história da minha avó, alguém muito especial para mim. E não fazia ideia nenhuma do que estava ali escrito, se ia ler coisas que preferia nunca de ter lido. O que eu sei, é que li-o com uma vontade enorme, género aqueles livros, que se lê numa noite, porque estamos muito curiosos pelo seu final, ou porque a escrita é tão entusiasmante e viciante que não conseguimos deixar de lê-lo.
Ao avançar cada vez mais, nas páginas do “livro”, a sensação de estranheza e nervosismo, foi passando, dando lugar a uma profunda tristeza. Era um “livro” triste, cheio de mágoas, dor, sofrimento...logo a minha avó que tinha o sorriso mais encantador que alguma vez vi. Mas nem tudo são tristezas, e aqui também descobri o que fazia a minha avó feliz, para além da sua família, ela adorava cantar «quando me sinto só; ponho me logo a cantar; e assim vou distraindo; às vêzes para não xorar», adorava cinema e passear.
Mas o “livro” não fala só da vida de uma pessoa, nele estão também mencionados factos históricos: a Gripe Pneumónica de 1918 em Portugal que matou mais de 60 mil pessoas, incluindo o pai da minha avó «morreu no ospital; pela grande enpedemia; mas as mortes eram tantas; que ninguém dos seus sofria; fizeram-lhe o funeral; no meio da atrapalhação; viram que não era meu pai; quando lhe abriram o caixão», e do período de crise que se vivia no pós Primeira Guerra Mundial «as bixas de gente eram grandes; e não chegava para todos; mas a fôme era muita; e roubavam os aos outros», «e vinha a guarda a cavalo; e sem ter dó de ninguém; espesionavam toda a gente; ficasem eles mal ou bem»
Nunca pensei que a minha avó guardava um bem tão precioso, e que um dia eu teria o privilégio de abrir as páginas da sua vida: «Viveu muito pobre; mas onradamente; fêz sempre boa figura; ao pe de toda agente», «eu nunca fui estudar; mas tenho comprienção; não e preciso estudar; para ter educação», «Na alegria da vida; não conta só o dinheiro; quantas pessoas são ricas; e xoram o dia enteiro», «não à riqueza maior; do que armonia no lar; podemos ter muitas faltas; mas alegria para dar».
São estas palavras, simples mas cheias de significado que fazem desta herança de família, o “livro” mais importante que já li. E acredito, que por muitos livros que leia, nenhum vai ter a importância que este tem e continuará a ter na minha vida. Este conta a história da minha avó.
Agora que estou quase a acabar, queria referir que este “livro” foi escrito pela minha avó paterna, de seu nome Rosa Silva, quando esta tinha 56 anos, morrendo no ano de 1998, com 83 de idade.
Era difícil encontrares um tema melhor. É uma bela história e foi para ti uma leitura muito intensa. Adorei e acho que as transcrições dos pedaços escritos pela tua avó com os erros que dava nos mostram bem a grandeza e a dureza da sua vida. Parabéns!
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